sábado, 15 de fevereiro de 2014

O rei se inclina e mata - o original




Der König verneigt sich und tötet (traduzido em Português como O rei se inclina e mata), Herta Müller, Fischer Verlag.


Trata-se de um conjunto de ensaios autobiográficos, uma amostra da riqueza do estilo e da força da escrita e experiências que deram a Herta Müller o devido reconhecimento através de vários prêmios literários, incluindo o Nobel de Literatura de 2009.

Estes ensaios, segundo informações na edição que eu tenho, foram gerados a partir de palestras dadas pela autora em diferentes ocasiões.

Herta Müller nasceu no seio de uma família e comunidade de origem alemã que existia (ou tentava sobreviver) na Romênia na época em que uma forte ditadura dominou o país. Em um dos ensaios, ela conta que, enquanto os trabalhadores comiam pão duro nas fábricas, o ditador usava talheres de ouro em suas refeições. Conta também que viu a ruína de muitas famílias que tiveram de entregar tudo o que produziam para o Estado, como a ruína de seu avô, antes um bem sucedido comerciante de grãos que, já quase no fim da vida, alimentava a família com as migalhas da produção que era obrigado a entregar para o único patrão: o Estado, que o remunerava muito mal. Conta também das perseguições sofridas, ameaças e tentativas de assassinato, a epidemia de sumiços e suicídios que justificou a partida de vários de seus amigos que, como ela, questionavam a situação. Na sinopse do livro ela conta que sempre lhe perguntavam por que 'cabeleireiro' era freqüentemente mencionado em seus escritos e ela respondia: o cabeleireiro mede o cabelo e o cabelo mede a vida. Então ela elucida que, na época de maior perseguição política, ela e seus amigos costumavam deixar fios de cabelo espalhados por vários lugares: dentro de livros, gavetas, armários. De modo que quando voltassem para casa no fim do dia de trabalho e encontrassem os fios fora do lugar, sabiam que o apartamento havia sido revistado pela polícia secreta do governo em busca de provas para acusa-los e prendê-los.

Dentre os ensaios que mais gostei está um no qual ela fala de sua experiência num jardim de infância. Ela era uma professora que, devido à sua postura crítica ao regime, não era bem-vinda nas escolas e tinha muita dificuldade para encontrar trabalho. Estando uma das professoras doente, ela foi chamada, por pura falta de opção, a passar algumas semanas substituindo a 'camarada'. Ela conta que nestes poucos dias espantou-se com a eficácia do banho de ideologia que recebiam as crianças, tanto que nos de cinco anos já haviam acabado com toda a chance deles verem qualquer valor e necessidade no individualismo, nem mesmo uma simples canção infantil que lembrasse coisas da natureza, como a queda da neve, era permitido. Tudo era o Estado, o chefe supremo (o ditador), o coletivo (que só serve a poucos, como bem sabemos) e os abusos do nacionalismo. Ao final de algumas semanas ela alegrou-se com a volta da colega, pois se tivesse de passar mais algum tempo naquele quartel-mirim, em constante vigilância pelos 'pequenos camaradas', futuros agentes da vigilância do Estado, teria pedido demissão.

Outro ensaio que muito me marcou foi um no qual ela conta a sua experiência quando chegou na Alemanha, fugida da Romênia. Embora o Alemão fosse a língua falada na família e em sua comunidade, a língua materna, não era a mesma língua falada na Alemanha que a abrigou. As palavras eram as mesmas, mas sentidos eram outros. Mesmo sendo alemã, sempre era perguntada de onde vinha, como se lhe faltasse o sotaque de um nativo e o jeito 'alemão' de pensar. Para ela isso foi uma revelação em vários sentidos e eu me vi calçando bem os seus sapatos porque o mesmo se deu comigo, ou algo muito parecido. Neste ensaio ela levanta questões de aceitação, tolerância e integração de culturas. É um dos ensaios mais ricos desta coleção.

Dos textos até agora lidos, a escrita de Herta Müller deu-me a impressão de uma exatidão e agudeza impressionantes no que foi dito, não há sombra de tentativas ou intenções, há palavras-fatos, como se nenhuma delas fosse empregada em vão, e não é qualquer escritor que consegue isso, em minha humilde opinião; nenhuma palavra estaria nos textos fora de tempo, contexto ou lugar, tudo casa perfeitamente mas parece ter surgido naturalmente, sem plano, exalam a 'desengasgo', a falar aquilo que não podia ser dito nem ninguém antes ousara pronunciar porque não havia palavras para concretizá-lo, e neste aspecto ela maneja línguas, sentidos e palavras como se fossem pedras das quais extrai maná. Isso produz imagens fortes que marcam profundamente, sem violentar o leitor. A prosa é densa e maduramente lírica, trata da dor sem causar mais dor, causa alívio, faz pensar, gera incômodo e compreensão ao mesmo tempo, numa medida que transforma quem lê (aqui falo também da ficção, pois estou lendo Niederungen, seu primeiro romance). Não diria que a escrita de Herta é difícil, diria que é uma mistura de idéias magistralmente escritas, sem confusão. Pelo menos foi isso o que eu senti com a leitura desta coletânea de ensaios e de uma pequena parte de sua produção ficcional.



Avaliação: Ótimo







© 2014 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

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