Querida Helena,
Muito me orgulha ser vista por ti como uma leitora qualificada. Vindo de ti, esse é um baita de um elogio, sabias? Sim, pois vem de uma pessoa que muito admiro, não só como escritora e leitora apaixonada pela Literatura mas, sobretudo, como pessoa, bípede, como tu bem gostas de dizer. E nem falar do quanto me alegra ter tua amizade, coisa que eu nem penso em agradecer, já que amizade não se agradece, apenas se retribui com sinceridade e carinho.
O meu encontro com a tua prosa, no teu primeiro livro - o multifacetado A condição indestrutível de ter sido, que trata ao mesmo tempo da superficialidade dos relacionamentos e da profundidade dos desejos humanos, e que me foi apresentado pela querida Juliana Gervason -, foi e continua sendo uma experiência de leitura mais que marcante. E é por isso que me alegro, infinitamente, em ter em mãos um exemplar - com dedicatória e autógrafo! - do teu muito aguardado segundo romance.
Sim, eu disse que o devoraria assim que o recebesse. E foi o que fiz: devorei-o-o! Não imediatamente ao recebê-lo, mas quando o tempo se me deu suficiente para que eu pudesse sentar e ler, de um fôlego, a história que nos conta a tua bonequinha, que nada, nada, de lixo tem, a não ser a companhia – forçada, claro - dos seres-lixo que a tratam como objeto.
Mesmo já sabendo um pouco do que se tratava o texto, por conta dos comentários e resenhas que já foram postados sobre ele, devo dizer-te que a bonequinha muito me surpreendeu - positivamente, claro! Isso porque, inconscientemente, talvez eu esperasse uma narradora não tão jovem e um tom narrativo com o qual eu já estava acostumada em teu primeiro livro. E que bom que essa repetição não teve chance de acontecer, já que a bonequinha tem uma forma de narrar que me faz lembrar o estilo irônico-cortante empregado nas vozes narrativas do imperdível Menina, mulher, etc, livro da britânica Bernardine Evaristo, autora negra premiada com o The Booker Prize de 2019. Creio que os tons se parecem porque os abusos sofridos por mulheres, meninas etc. são os mesmos no mundo inteiro. Triste realidade!
A mudança de tom, do primeiro para o segundo livro, pode ter até muito a ver com uma clara reação ao machismo tóxico do nosso tempo, isto é, com a triste ascensão da boçalidade no Brasil em quase todas as esferas, mas, muito provavelmente, é consequência do teu amadurecimento como bípede atenta, que observa o mundo e se sente profundamente afetada por ele. Essa mudança de voz é, portanto, consequência natural do teu desenvolvimento como romancista, e por ser o segundo livro, que maravilha que ele foi pelos próprios caminhos. Melhor ainda: que bom que ele nos leva junto com ele, num mergulho, por esses caminhos novos!
Tudo isso pra te dizer simplesmente que adorei o livro, que ele me surpreendeu, que o acho mais que necessário e que é literatura da melhor qualidade, aquele tipo de leitura que inquieta e marca. É um livro que todo o mundo deveria ler, enfim: um livro do qual muito me orgulho de ter lido e de poder falar sobre ele, um livro do qual muito me alegro em ter um exemplar para reler e encher de anotações e, sempre que quiser, voltar às tantas partes que sublinhei, aquelas que me emocionaram, e pensar sobre elas mais uma vez.
Agora, um detalhe... Eu, assim como a bonequinha, também sou filha de um José Carlos - sim, literalmente. Tenho os genes de um José Carlos que nunca vi, e só sei que se chama José Carlos porque me contaram, já que em meus documentos o “pai” se chama “desconhecido”. Acho que, ao ter sido abandonada por esse José Carlos Desconhecido, mero reprodutor, tive muito mais sorte que a bonequinha, que teve que conviver com o seu pai-lixo.
Daí você pode ter uma ideia do quanto a leitura desse livro me tocou, pois sei de quantas verdades a narradora fala. Quanto aos reis da categoria dos desprezíveis, destes não preciso nem falar, já que a internet e a vida estão cheias deles, bem como de seres hipócritas recalcados que despejam nos outros as frustrações por não conseguirem admitir quem são de verdade, e passam a vida “no armário“ Pior: passam a vida atirando pedras em quem tem a coragem de se assumir. Como já disse, estamos vivendo a era da hipocrisia, da boçalidade e da covardia.
No entanto, vivendo fora do Brasil, e tendo conhecido realidades um pouco menos machistas que a brasileira, sei que é possível construirmos uma sociedade menos tóxica. E esse desafio está, sobretudo, na educação das pessoas, na denúncia constante do que está errado, como o teu livro agudamente faz.
Assim sendo, só posso te agradecer por tê-lo trago à vida e por tê-lo “amamentado”. Sei que a gestação deste texto não foi fácil, não pode ter sido, porque a violência machuca e causa dor, ainda que seja "ficção". Então te agradeço por teres conseguido transformar toda essa indignação em palavras construtivas, palavras concretas e fortes que, verdadeiramente, e na estrutura, podem gerar transformação.
Gracias, Bonequinha, gracias, por mostrar ao mundo o lixo do patriarcado!
Danke, Helena, por teres permitido que a bonequinha contasse a história dela que - nossa! - quão nossas são!
Um beijo literário,
Da Bluemaedel que ama ler e amou ter lido o teu livro!