sábado, 15 de fevereiro de 2014

Os Bruzungandas



Os Bruzundangas, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881- 1922), coletânea de crônicas publicada postumamente em 1923, obra de domínio público.

Este livro está disponível em vários formatos de arquivo para baixar legalmente no site www.dominiopublico.gov.br, mas nenhum desses formatos proporciounou-me uma leitura confortável num e-reader, de modo que resolvi gerar uma versão em ePub e disponibilizar também gratuitamente na minha biblioteca virtual, o Quintextos. O texto do arquivo original não sofreu alterações, apenas corrigi erros, claramente, de digitação.

O que mais me chama a atenção nestes textos de Lima Barreto é a sua linguagem aguçada e refinada ironia, a arte de dar tapas com penas de ganso, se me permitem a pobre comparação. As crônicas desta coletânea foram produzidas nas primeiras décadas do século XX e, inacreditavelmente, seguem atuais. Li várias vezes o livro completo, dado o meu trabalho de edição. E li com prazer. Nelas encontramos críticas ao racismo, ao sistema educacional da época, aos doutores de canudo, à classe política e seu comportamento criminoso de só pensar em si e nos amigos, a prática do nepotismo (empregar parentes em órgãos públicos), a venda das riquezas do país e a má utilização dos bens e dinheiro públicos, dentre outras questões. Encontramos também crítica a mentalidades, ao comportamento dos ditos 'literatos’ da época, enfim: quase tudo que há anos impede o progresso verdadeiro do país.

A coletânea começa com um capítulo muito divertido sobre a literatura do país fictício: a Bruzundanga, que muitas semelhanças tem com o Brasil, mais antigo e o atual. Ao que parece, a crítica foi direcionada aos ditos parnasianos, ainda mais considerando a época em que foi feita, mencionada em vários livros como pré-modernismo e modernismo (em 1922 deu-se a famosa Semana de Arte Moderna).  Segue com uma crítica a comportamentos de políticos, aos que se consideram nobres ou elite e como essa ‘nobreza’ passa a existir, da noite para o dia; críticas ao comportamento de ditos representantes e funcionários públicos e às formas como são conduzidos os relacionamentos com estrangeiros e seus países. Fala dos desmandos e absurdos no trato com as riquezas da terra e das oligarquias, sobretudo a do café e as falcatruas do mercado, da falsidade do  ensino e dos métodos de obtenção de títulos e diplomas (se naquela época já era assim, imagine agora!), das regalias dos diplomatas e do endividamento do país. O capítulo VIII, que trata da Constituição da Bruzundanga é, sem dúvidas, um dos melhores trechos. Muito importante para os brasileiros seria, quem sabe, entender o conceito de ‘pertencer à situação’ ou de recorrer à Chicana, como a Justiça se chama na Bruzundanga. Daí seguimos com descrições do comportamento e requisitos para ser presidente da república ou mandachuva, nos termos de lá, com capítulos sobre a força armada, um certo ministro, sobre os heróis desta terra brava, a sociedade (que pariu e mantém a Bruzundanga do jeito que ela é), as eleições e o comportamento dos médicos e secretários de políticos (indispensáveis!). Os últimos dois capítulos trazem desmandos de poder tanto de províncias quanto de seus governantes e um punhado de outras histórias que voltam a tocar em tudo o que foi dito em algum dos capítulos anteriores. Ou seja, Os Bruzundangas é um livro que vale muito a pena ser lido por todos os brasileiros, principalmente aqueles que não desistem de sonhar com um futuro possível e não se acostumam 
“Com a falta de rumo brasileiro
E esse tom de desespero” (1).

E para gerar apetite, deixo aqui um taquinho de A POLÍTICA E OS POLÍTICOS DA BRUZUNGANDA:

“Com esse apoio forte, apoio que resiste às revoluções, às mudanças de regime, eles tratam, no poder, não de atender as necessidades da população, não de lhes resolver os problemas vitais, mas de enriquecerem e firmarem a situação dos seus descendentes e colaterais.
Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a cousa mais fácil desta vida.
Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela, para que, na sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem, empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres.
Um povo desses nunca fará um haro, para obter terras.
A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tem o governo que merece. Não devemos estar a perder o latim com semelhante gente; eu, porém, que me propus a estudar os seus usos e costumes, tenho que ir até ao fim.


(1) Trecho de Tempestade, Zélia Duncan.


Avaliação: Ótimo



© 2014 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

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