quinta-feira, 21 de junho de 2018

Narrativas claustrofóbicas: comentário sobre Palavras que devoram lágrimas, de Roberto Menezes


Helena Frenzel

"Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado de costas sobre a própria couraça, e ao erguer um pouco a cabeça enxergou seu ventre marrom, acentuadamente abaulado, com profundas saliências arqueadas, sobre o qual o cobertor, quase escorregando, estava prestes a cair. Suas muitas pernas, terrivelmente finas em comparação à largura do corpo, agitavam-se desamparadas diante de seus olhos. "O que aconteceu comigo?", perguntou-se. Não era um sonho" (Kafka 2002: 7).

Assim começa A Metamorfose, famoso texto de Franz Kafka. Começa com o narrador nos informando, destacando até, que a transformação de Gregor Samsa em inseto não se tratava de um sonho. 

Já Maria, Maria só, sem sobrenome, a narradora-autora de Palavras que devoram lágrimas, texto do autor paraibano Roberto Menezes, quer que seu interlocutor "imagine" que tudo o que ela está escrevendo "foi um sonho" (Palavras: 56). Foi? Verdade? Não sabemos. Ora ela nega, ora ela afirma. Muitos de nós queríamos que fosse sonho a realidade, não? Com Maria não poderia ser outro caso. 

Maria é ou queria ser uma escritora, e ela está escrevendo – literalmente! O produto recebe o título de Palavras que devoram lágrimas (e aqui caberia perguntar se Roberto plagiou Maria ou se Maria plagiou Roberto, ou se Roberto é apenas um nome na capa, ou se Roberto é Maria ou se Maria é Roberto ad infinitus somniãre). 

Bem, Maria não tem papas na língua. Ela é, metaforicamente, uma lixa. A sua linguagem é a do dia a dia, aquela que fere ouvidos acostumados a eufemismos do meio retórico político. E esta escolha do registro linguístico não é por acaso: imagine Maria falando com tom de apresentadora de Jornal Nacional, que muitos dizem ser, do português brasileiro, a norma culta, ou escrevendo sem o seu sotaque de nordestina e candanga... Carai, véi! 

Maria é desbocada mesmo, Maria se sente livre para falar abertamente de fantasias e clichês, para usar palavras de baixo calão, palavras brutas que "raspam", pois o que ela quer é raspagem de alma, é catarse. O motivo do vômito e dos fluidos corpóreos está sempre presente como forma de purificar-se. Maria vomita, se esgarça e se deixa rasgar. Ela está se descascando, deixando-se raspar e raspando. 

Maria se diz cientista e tem gente que duvida pois acha que mulher não pode ser boa em ciência nem em tecnologia, e aí Maria, querendo sem querer, joga nas caras preconceitos e tapas. Maria é fiel a si mesma. Maria pode até ser machista, porém é sincera consigo mesma e com o seu mudo interlocutor (e há uma razão para essa mudez, mas você terá que ler o livro para saber). Maria está se lixando para o que venham a pensar dela, ela quer se matar de escrever, para poder renascer ou continuar existindo de alguma forma.

O tempo que levamos para ler as 140 páginas do texto de Maria é o tempo (real?) que passamos com ela neste lugar claustrofóbico onírico que, não por acaso, é o gabinete de um político. Se vereador, deputado ou senador, não se sabe ao certo, apenas se sabe que é mais um dos tantos cargos que vivem às custas dos contribuintes, dos tantos que suscitam na população esse desprezo generalizado, esse sentimento surreal de estar completamente sem opção, como se qualquer possibilidade de política limpa tivesse chegado ao fim e ao cabo das vendidas instituições. O lamento de Maria é o lamento de muitos, seu sadomasoquismo é o discurso de tantos "cidadãos de bem" (cruzes!) que defendem a volta da tortura (Que Deus nos livre dessa gente!). No discurso de Maria se espelham a decadência, a indiferença e o sem rumismo de toda uma época e geração. 

Digno de nota, porém, é que Maria não revisa, o texto já nasce pronto, mas há casos na vida que são exatamente assim, e mesmo que ela questione no próprio texto a verossimilhança e a técnica narrativa, num nível meta, suas palavras estão sendo lidas – pelo menos assim ela imagina – diretamente por seu interlocutor enquanto ela as digita na tela do seu word que não "salva" (Palavras: 99). Que risco! Maria adora correr riscos, pois viver é isso, já dizia o Rosa, o Guimarães.

Curioso, no entanto, é que Maria não trabalha, e a sua não-preocupação com o quesito sobrevivência, também o seu desapego na hora de lidar com coisas materiais, muito provavelmente se justifique por conta de seu ex-marido político, que, como é sabido, é uma categoria que tem muitos benefícios ampliados aos parentes. É triste, mas é muito verossímil, não? Maria pode até ter se inventado, mas o ambiente nababesco em que ela vive não é nada maquiado. 

Isso nos faz pensar que, quanto menos recursos uma pessoa tem, de menos tempo ela dispõe para se ocupar com problemas psíquicos. Não que os pobres não os tenham, o que ocorre é que as personagens pobres não têm pausa na luta diária para pensar sequer em como estão se sentindo, pois se param para pensar, morrem, e morrem mudinhos.

Curiosamente, neste mesmo padrão de despreocupação com a sobrevivência está a personagem Laura, protagonista de Julho é um bom mês pra morrer, outro romance do Roberto que recomendo. Mas Laura tem pai remediado que a sustenta por muito tempo e a um certo ponto ela ganha na loteria (perdoe o spoiler, mas é besteirinha). As boas posições na pirâmide social tanto de Laura quanto de Maria não me parecem coincidência, já que as duas fazem parte de um mesmo tipo de sociedade, época e comportamento, o que nos faz querer indagar o por quê de as coisas assim serem ou estarem. 

Por que em meio a tanta tecnologia e fartura há tanta depressão e falta de autoestima? Por que tanta indiferença e solidão? Por que tanta falta de afeto? Por que tanto umbiguismo e inaptidão para lidar com a vida? Por que tanto desejo de boicote e autodestruição? Por que tanto rivotril e  insatisfação? Por quê, carai?

Tanto Laura quanto Maria são muito conscientes de suas falhas psíquicas, de seus traumas, da culpa que assumem unicamente para si. Mas os respectivos tempo e espaço em que elas vivem não estão impunes: por que de repente virou moda ter que recorrer ao rivotril para aguentar as pontas neste mundo líquido? Ora, porque nada mais é sólido! Tudo pode se desmanchar. 

Maria diz ter alma de adamantium, mas a sua alma se corrói no ácido da autoexploração que se disfarça de liberdade, pois, segundo Byung-Chul Han, a estratégia mais eficaz é fazer as pessoas se consumirem e darem toda a sua energia com a ilusão de que são livres e que "podem" de fato algo: "Yes, we can! Sim! Nós podemos, como sociedade, tornar mais ricos os já ricos e mais miseráveis os miseráveis. E Maria nos diz isso, sem dó nem piedade, nos joga na cara.

Maria nos traz uma narrativa altamente questionável (de propósito!) e cheia de símbolos: as cores das camadas de tinta que ela vai descascando ao lixar as paredes de seu quarto vão revelando seus nodos psíquicos. Maria está lixando as paredes em busca da cor original (da parede ou de sua alma) e, nesse caminho, descobre que oposições, como céu e inferno, não são bem o que se costuma pensar. Ela descobre que, muito lucidamente, é melhor ter uma "alegria fraturada, mas não morta", que uma falsa felicidade (Palavras: 134). 

Dica para quem gosta de interpretar: as cores e as associações não são por acaso, há muito o que especular, também no "grito xiita" (Palavras: 19). Pois, como nos diz o alter ego: "o mais profundo que se pode ir é o estúpido do artificial" (Palavras: 133). Bingo!

Sim, no caso de Maria foi um sonho, parece que foi, mas pode não ter sido, nunca saberemos. Sedutora pois é a angústia que se agarra a quem lê estas páginas das primeiras às últimas reticências, pontinhos que abrem e fecham o texto, ou melhor: não abrem nem fecham, apenas marcam o intervalo. 

Pra finalizar eu diria que, como Kafka e Maria, o que se procura é narrar o inenarrável, quer estejamos sonhando ou bem acordados. 

Referências: 

Franz, Kafka (2002): A Metamorfose(tradução de Calvin Carruthers), São Paulo: Nova Cultural.
Han, Byung-Chul (2016): Müdigkeitsgesellschaft. Burnoutgesellschaft. Hoch-Zeit, Berlim: Matthes & Seitz.
Menezes, Roberto (2015):Julho é um bom mês pra morrer, São Paulo: Patuá.
Menezes, Roberto (2017):Palavras que devoram lágrimas, São Paulo: Patuá.




© 2014-2017 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Jovem poeta maranhense surpreende com outras formas de o amor ver


Pois é, mea culpa por não ter lido este livro antes, mea culpa por ter me privado do prazer!

Falo do segundo livro do poeta maranhense Antonio Sodré, (Des) Amores, publicado em 2017 sob o selo da editora Penalux.

Mea culpa por não havê-lo lido no mesmo dia em que o recebi. Pois teria tido o êxtase antes. Ou não. É que, como o vinho, poesia eu não degusto sem ritual. Não posso. Há que se formar toda uma atmosfera e tempo e ambiente para a degustação de versos, há que se esperar aquele momento em que se encaixam melhor as constelações, aquele instante propício em que um livro nos convida ao prazer do descobrimento. Poesia é algo que não dá pra ler em qualquer lugar, com pressa, é preciso a companhia do silêncio e a cumplicidade do desejo de entregar-se à sedução da linguagem.

Como alguém que se atreve a engendrar versos de quando em vez, bem sei o quanto é difícil tratar deste tema tão (des)gastado: o amor. Por isso mesmo digo que não consigo escrever poemas desse tipo, tenho um bloqueio natural. Freud que explique! Por conta disso admiro tanto e festejo aqueles que conseguem jogar com esse tema fugindo de qualquer melosidade viscosa (pleonasmo intencional).

Este segundo livro de Antonio Sodré é uma surpresa literária porque trata do tema mais comum da humanidade com tanta maturidade e elegância, que passamos 64 páginas pensando nesse sentimento sem lembrar dos sentidos mais clichês da palavra amar, e não é à toa que chegamos ao final com a constatação de que "há sempre mais para entender sobre o amor" porque, sobretudo no fim, é que ele revela os "singulares romantismos plurais", palavras que tão bem marcam a composição do volume. 

Eu bem poderia seguir neste comentário destacando a qualidade literária dos poemas que compõem este livro, para no final dizer que concordo em gênero, grau, número e flor da pele com as observações do prefácio escrito por Carvalho Junior, que eu deixei para ler no final para ver se nossas opiniões sobre os poemas convergiam após a minha leitura. E convergiram. Muito. Até nas vírgulas! Carvalho Junior, poeta maranhense que vem obtendo cada vez mais reconhecimento por seu esmerado labor lírico, sabe muito bem do que fala: "Antonio Sodré é desses poetas que bem conhecem as interpenetrações do silêncio e possui uma capacidade finíssima de trazer dos abismos mais secretos, pedras extraordinárias e delirantes de sangue literário".

Isso acontece também com aqueles poetas de espírito antigo, que ainda trocam cartas e escrevem literalmente à mão, sentindo as palavras, cada uma ao desnudar-se.

Poesia sensinteligente (sensível e inteligente) pra sentir e fazer pensar.


























(Des) Amores, Antonio Sodré, editora Penalux, 2017, 64 páginas.

Busque, encontre e leia: não se prive deste prazer!

Uma amostra:

FOME

Não vês, minha solidão é a alegria que guardo.
Sou feliz e triste nesse espaço de construir castelos
moradas subterrâneas.

Não vês, nomeio os seres que têm nome
dou forma às coisas que têm forma
sepulto a uma segunda morte
a perecível parte que nos cabe.

Não vês, a sensível outra realidade que transborda
nesses lapsos de esquecimento entre certo e errado
entre a razão e a loucura.

Não vês, eu enxergo o vazio entre as nuvens por teus olhos
o adeus que nos acena todas as manhãs
a distância que se aproxima de nossos corpos.

E se volta, motivado pela fome, qualquer fome
já não sabes meu segundo nome
e a textura da comida é tua única urgência.

Esqueceste de tuas outras fomes
e em vão me alimenta de teus lógicos vazios...

(Des) Amores, Antonio Sodré, página 22.



© 2014-2018 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Leituras de janeiro 2018




Leituras de 2018 que eu ainda não havia registrado aqui. O tesouro "Kassandra", de Chirsta Wolf, um conto sobre a lenda de Tróia e "Gegen den Hass" (contra o ódio), ensaio de Carolin Emcke, leitura indispensável para os dias atuais.


























Uma fábula como eu nunca havia lido antes: apaixonante, uma injeção de fantasia e coragem!


Der Fluch der Spindel (The Sleeper and the Spindle), Neil Gaiman, Ilustrações de Chris Riddell, editora Knesebeck.





Saindo da área de conforto, lendo coisas que eu não costumo ler. Descoberta? Este Psychothriller de Sebastian Fitzek. Resultado? Vou atrás de outros livros dele para ler! O "cabra" entende da arte. Gostei! 


Das Paket (O Pacote), Sebastian Fitzek, editora Droemer.



P.S.: nesta edição o autor faz uma homenagem aos leitores com uma seleção de emails que ele recebeu ao longo de 10 anos de publicação. Os depoimentos dos leitores (de suas histórias e de como os livros do Fitzek afetaram estas histórias) vale muito o tempo de ler. Por isso o autor aconselha: autoras e autores, busquem o contato com seus leitores, leiam e respondam (verdadeiramente) a todos os emails que receberem. Vou guardar este conselho! 

Ah, parece livro velho, mas não é. A arte da capa é pra dar mesmo esse efeito: de pacote de correio que já passou por muitas mãos.



























De quando em quando a vida reforça a minha certeza de que, na verdade, não sou eu quem escolhe minhas leituras; são eles, os livros, que me escolhem. Tudo tem uma hora certa para acontecer e este foi o momento mais apropriado para este texto entrar na minha vida. Dificilmente o esquecerei: lírico, fantástico, impactante, como toda boa leitura costuma ser.


Neil Gailman, Der Ozean am Ende der Straße (O Oceano no Final da Rua, tradução literal, minha, para o título em alemão), editora Eichenborn, 2014.



A vida é assim, marota: a pessoa sai de casa para comprar pão e volta com um tesouro na bolsa.


Esse é daqueles livros super "perigosos": você lê a primeira frase e não consegue largar até o final. E no final, larga com pena!



Lucia Berlin, Was wirts du tun, wenn du gehst, Stories, Editora Arche, 2017, tradução do inglês para o alemão de Antje Rávic Strubel, também escritora que, além de Lucia Berlin, traduz para o alemão os livros de Joan Didion, outra escritora que vale muito a pena conhecer!

Aqui um poema que escrevi para Didion, quando me encontrei com ela através de um de seus livros:



© 2014-2018 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Cartas a Hermengardo, conto de Clarice Lispector, trecho

"Senta-te. Estende tuas pernas. Fecha os olhos e os ouvidos. Eu nada te direi durante cinco minutos para que possas pensar na Quinta Sinfonia de Beethoven. Vê, e isto será mais perfeito ainda, se consegues não pensar por palavras, mas criar um estado de sentimento. Vê se podes parar todo o turbilhão e deixar uma clareira para a Quinta Sinfonia. É tão bela. Só assim a terás, por meio do silêncio. Compreendes! Se eu a executar para ti, ela se desvanecerá, nota após nota. Mal dada a primeira, ela não mais existirá. E depois da segunda, o segundo não mais ecoará. E o começo será o prelúdio do fim, como em todas as coisas. Se eu a executar ouvirás música e apenas isto. Enquanto que há um meio de detê-la parada e eterna, cada nota como uma estátua dentro de ti mesmo. Não a executes, é o que deves fazer. Não a escutes e a possuirás. Não ames e terás dentro de ti o amor."
Trecho de Cartas a Hermengardo, conto de Clarice Lispector.


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