quinta-feira, 27 de julho de 2017

No alto da ladeira com a poesia maranhense



Poesia não tem nacionalidade, mas tem cor, gosto e raízes. E nas raízes da poesia encontramos poiesis, termo grego que significa "criação" ou "produção", derivado de "criar" ou "fazer". Platão, no seu famoso O Banquete, definiu poiesis como sendo: "la causa que convierte cualquier cosa que consideremos de no-ser a ser" [1], ou seja: daquilo que não era, algo se fez. Porém, nesta poiesis está também o jogo, a brincadeira, de modo que não se engana quem, grosso modo, define poiesis como sendo "a ação ou a capacidade de produzir ou fazer alguma coisa, especialmente de forma criativa" [2], e também não se equivoca aquele que diz que fazer cantar a pedra [3] ou fazer letripulias [4] é o que faz a poesia.
E essa pedra canta com ou sem lírica, como nos explica Hans-Dieter [5] quando tenta nos mostrar as qualidades (e as realidades) que um bom poema tem. Lírica vem de lira, que é um instrumento musical, lírica remete ao som, ao ritmo, mas a poesia não tem necessariamente que ser só lírica, ela tem outras qualidades porque há ocasiões em que a pedra não canta, ela grita, e é por isso que os ingleses separam poems de lyrics, e lyrics não é só a letra de uma canção. A lyrics pode estar ou não no poem, o poem vai sempre além.
         Dança dos Dísticos e No alto da ladeira de pedra estão repletos deste tipo de poems, lyrics e de uma combinação muito especial dos dois. Talvez por ser maranhense eu consiga identificar com mais facilidade esse jeito todo especial que só os poetas maranhenses têm de fazer poesia – na minha opinião, claro. Não me deixa mentir Ferreira Gullar, Zeca Baleiro e o próprio Gonçalves Dias, filho também de Caxias, como o nosso Carvalho Junior, autor dos livros citados acima.
Tenho dificuldade em definir rapidamente o que seria esse jeito todo especial maranhense de fazer poesia, portanto paro por aqui com as considerações genéricas e passo às impressões de leitura, pedindo devida licença ao poeta para usar como matéria prima pérolas de seus próprios versos:

No alto da ladeira de pedra

No alto da ladeira de pedra entreguei-me ao prazer lírico e pude apreciar as curvas dos versos para ler pípedos. Versos para ler pípedos e versos pra não ler tépidos, versos para ler-se pondo-se nos lugares do eu poético, nos lugares tantos da infância pura que bebe da água doce dos rios que os meninos de piscina sequer imaginam.
No alto da ladeira de pedra cheguei a sentir o bom cheiro do sabão de coco das esquinas de caxias maranhenses, e o odor forte da indignação com o descuido, com o descaso e com a falta de memória. Mas também senti o perfume do orgulho, bem dosado, de ser de Gonçalves Dias, e dos índios da tribo Quirola, parte da história e poético legado.
No alto da ladeira de pedra enxerguei letripulias pulando amarelinha entre versos que se enraízam em Macondos bem fundadas, negros buracos ou abismos que nos olham de volta entre páginas e entre épocas em que havia Chaplins, alexandrinos e boas escolas que ensinavam "fazer cantar a pedra", como disse Salgado.
No alto da ladeira de pedra senti machadadas e a dor de lembranças que por meio de flandres recusam-se a mostrar-se óbvias. Mas também vi lembranças alegres, tecidas na rede de antepassados e na esperança da troca de penas e pernas, no renovo criativo que projeta a poesia no tempo e na ousadia dos poetas.
No alto da ladeira de pedra vi imagens-movimento em frases de rolimã, vi imagens místicas dançando em dísticos, soneto-forma e livres construções que se prendem de bom grado a laços sensuais de versos sentidos e bem pensados, versos plásticos (pois carregam a imagem), construídos na consciência da arte da versiplantagem. Versos dos quais não cabe dizer que sejam banais ou por acaso, muito ao contrário: No alto da ladeira de pedra os versos descem encarrilhados na linha de quem sabe da arte o bordado.
Com muita alegria vejo do alto desta ladeira a renovação da rocha da poesia maranhense, rocha assentada na tradição e lapidada pelo novo dos ventos dos versos que dançam e transcendem.
No alto da ladeira de pedra vi renovada a esperança para todos os poetas que não desistem de levar adiante, num mercado infestado de falsos diamantes, a pureza das pedras líricas, pedras que carecem de garimpeiros cada vez mais sensíveis que as separem do falso ouro das coisas do dia a dia.
No alto da ladeira de pedra vi a continuidade sóbria da poesia de Carvalho Junior, editada mais uma vez com esmero pela patuá dos poetas, a mesma editora que trouxe dança dos dísticos aos olhos do mundo.
Só posso dizer que a contemplação do alto desta ladeira muito me foi prazerosa. A língua da tejubina arde e chicoteia, por vezes até faz cócegas, mas não deixa de dizer ao que veio, não se permite passar por morta.

No alto da ladeira de pedra, Carvalho Junior, Editora Patuá, 2017.




[1] Cf. https://es.wikepedia.org/wiki/Poiesis (27.07.2017)
[2] Cf. www.dicionarioinformal.com.br/poiesis (27.07.2017)
[3] Salgado Maranhão citado por Carvalho Junior em No alto da laderia de pedra, p. 50
[4] Letripulia é um termo criado por mim no blog Bluemaedel para definir um tipo de criação literária que tem no jogo e na composição de palavras uma de suas marcas mais significativas. Letripulistas famosos (na minha concepção) são: João Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Noel Rosa, Carlinhos Veloz, Zeca Baleiro e vários outros maranhenses como Ferreira Gullar, Carvalho Junior e César Nascimento para citar apenas alguns.
[5] Gelfert, Hans-Dieter (2016): Was ist ein gutes Gedicht?, C.H.Beck, Munique.




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