Poesia não tem nacionalidade, mas tem cor, gosto e
raízes. E nas raízes da poesia encontramos poiesis,
termo grego que significa "criação" ou "produção", derivado
de "criar" ou "fazer". Platão, no seu famoso O Banquete, definiu poiesis como sendo: "la causa que convierte cualquier cosa que
consideremos de no-ser a ser" [1], ou
seja: daquilo que não era, algo se fez.
Porém, nesta poiesis está também o
jogo, a brincadeira, de modo que não se engana quem, grosso modo, define poiesis como sendo "a ação ou a capacidade de produzir ou
fazer alguma coisa, especialmente de forma criativa" [2], e
também não se equivoca aquele que diz que fazer
cantar a pedra [3]
ou fazer letripulias [4] é o
que faz a poesia.
E essa pedra canta com ou sem lírica, como nos explica
Hans-Dieter [5]
quando tenta nos mostrar as qualidades (e as realidades) que um bom poema tem. Lírica vem de lira, que é
um instrumento musical, lírica remete ao som, ao ritmo, mas a poesia não tem
necessariamente que ser só lírica, ela tem outras qualidades porque há ocasiões
em que a pedra não canta, ela grita, e é por isso que os ingleses separam
poems de lyrics, e lyrics não é só
a letra de uma canção. A lyrics pode
estar ou não no poem, o poem vai sempre além.
Dança dos Dísticos e No alto da ladeira de pedra estão
repletos deste tipo de poems, lyrics e de uma combinação muito especial
dos dois. Talvez por ser maranhense eu consiga identificar com mais facilidade
esse jeito todo especial que só os
poetas maranhenses têm de fazer poesia – na minha opinião, claro. Não me deixa
mentir Ferreira Gullar, Zeca Baleiro e o próprio Gonçalves Dias, filho também
de Caxias, como o nosso Carvalho Junior, autor dos livros citados acima.
Tenho dificuldade em definir rapidamente o que seria esse jeito todo especial maranhense de fazer poesia, portanto paro por aqui com as considerações genéricas e passo às
impressões de leitura, pedindo devida licença ao poeta para usar como matéria prima pérolas de seus próprios versos:
No alto da
ladeira de pedra
No alto da
ladeira de pedra entreguei-me ao prazer lírico e pude apreciar as
curvas dos versos para ler pípedos. Versos para ler pípedos e versos pra não
ler tépidos, versos para ler-se pondo-se nos lugares do eu poético, nos lugares
tantos da infância pura que bebe da água doce dos rios que os meninos de
piscina sequer imaginam.
No alto da
ladeira de pedra cheguei a sentir o bom cheiro do sabão de coco das
esquinas de caxias maranhenses, e o odor forte da indignação com o descuido,
com o descaso e com a falta de memória. Mas também senti o perfume do orgulho,
bem dosado, de ser de Gonçalves Dias, e dos índios da tribo Quirola, parte da
história e poético legado.
No alto da
ladeira de pedra enxerguei letripulias pulando amarelinha entre versos
que se enraízam em Macondos bem fundadas, negros buracos ou abismos que nos
olham de volta entre páginas e entre épocas em que havia Chaplins, alexandrinos
e boas escolas que ensinavam "fazer cantar a pedra", como disse Salgado.
No alto da ladeira
de pedra senti machadadas e a dor de lembranças que por meio
de flandres recusam-se a mostrar-se óbvias. Mas também vi lembranças alegres,
tecidas na rede de antepassados e na esperança da troca de penas e pernas, no
renovo criativo que projeta a poesia no tempo e na ousadia dos poetas.
No alto da
ladeira de pedra vi imagens-movimento em frases de rolimã, vi imagens
místicas dançando em dísticos, soneto-forma e livres construções que se prendem
de bom grado a laços sensuais de versos sentidos e bem pensados, versos
plásticos (pois carregam a imagem), construídos na consciência da arte da
versiplantagem. Versos dos quais não cabe dizer que sejam banais ou por acaso,
muito ao contrário: No alto da ladeira de
pedra os versos descem encarrilhados na linha de quem sabe da arte o
bordado.
Com muita alegria vejo do alto desta ladeira a renovação da rocha da poesia maranhense, rocha assentada na tradição e lapidada
pelo novo dos ventos dos versos que dançam e transcendem.
No alto da
ladeira de pedra vi renovada a esperança para todos os poetas que não
desistem de levar adiante, num mercado infestado de falsos diamantes, a pureza
das pedras líricas, pedras que carecem de garimpeiros cada vez mais sensíveis
que as separem do falso ouro das coisas do dia a dia.
No alto da
ladeira de pedra vi a continuidade sóbria da poesia de Carvalho Junior,
editada mais uma vez com esmero pela patuá dos poetas, a mesma editora que
trouxe dança dos dísticos aos olhos
do mundo.
Só posso dizer que a contemplação do alto desta
ladeira muito me foi prazerosa. A língua da tejubina arde e chicoteia, por
vezes até faz cócegas, mas não deixa de dizer ao que veio, não se permite
passar por morta.
No alto da
ladeira de pedra, Carvalho Junior, Editora Patuá, 2017.
[1] Cf. https://es.wikepedia.org/wiki/Poiesis (27.07.2017)
[2] Cf. www.dicionarioinformal.com.br/poiesis (27.07.2017)
[3] Salgado Maranhão citado por Carvalho Junior em No alto da laderia de pedra, p. 50
[4] Letripulia é um termo criado por mim no blog
Bluemaedel para definir um tipo de criação literária que tem no jogo e na
composição de palavras uma de suas marcas mais significativas. Letripulistas
famosos (na minha concepção) são: João Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Noel
Rosa, Carlinhos Veloz, Zeca Baleiro e vários outros maranhenses como Ferreira
Gullar, Carvalho Junior e César Nascimento para citar apenas alguns.
[5] Gelfert, Hans-Dieter (2016): Was ist ein gutes Gedicht?, C.H.Beck, Munique.
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