Blut significa "sangue“. Buch significa "livro“. Ainda assim não estou segura se posso dizer que uma boa tradução para o título desse livro seria "Livro de Sangue“. Também porque existe uma árvore que se chama "Blutbuche", que tem um papel muito importante nas histórias desse livro.
Sim, é um livro que trata de tradução, mas não de tradução, exatamente, em termos técnicos ou ensaísticos. É um livro que surge da tradução: de palavras, de silêncios, de linguagens que brotam do que não pode ou não deve ser dito, de dialetos que são menosprezados por falantes de línguas de ninguém, que são as línguas padrão, as línguas-standard, aquelas que regem os enunciados chamados "cultos“, aquelas que quem as usam se pensam e se acham "mais, muito mais“, por acharem que dominam o padrão quando, na verdade, o padrão não passa de uma língua nunca usada (sempre) corretamente, porque não é uma língua natural, é uma invenção que anda de braços dados com o império e a política, com a visão de grupos que têm prestígio para criar as "normas cultas" do mundo. Sim, esse livro é um desafio para qualquer um que traduz.
Assim que esse texto de Kim de L’Horizon, uma pessoa não binária, é um tipo de manifesto pelo uso corporal (sincero, umbilical) das línguas, pelo uso das linguagens; é um manifesto para que os corpos falem do que realmente sentem, ainda que seus discursos nos firam, que não nos sejam agradáveis aos ouvidos, que nos incomodem, que nos digam o óbvio algumas vezes, ou até nos entediem com a sua riqueza de detalhes.
Esse livro ganhou, em 2022, um prêmio literário muito importante no contexto de livros escritos em língua alemã, o Deutscher Buchpreis (Prêmio do Livro Alemão). E ganhou na categoria de Romance do Ano. Sinto que muito mereceu, o prêmio e a atenção que recebeu, sobretudo a dos meus olhos e ouvidos e sentidos demais.
A pessoa que nos narra também se chama Kim, e há muitas evidências no texto de que se trate de autoficção ou autobiografia, mas tudo o que escrevemos, tudo, é autobiográfico e autoficção em alguma medida. Esses conceitos literários são escorregadios como "bagre ensaboado“, então é melhor deixá-los de lado nessa simples nota de leitura que aqui faço.
Ainda estou sob o efeito da leitura desse texto sui generis, e não sinto facilidade em escrever sobre ele, porque o livro ainda não terminou de mexer comigo, pelo menos não em uma medida que algo tenha sido já decantado, a ponto de virar uma resenha que valha a pena a quem a alma não for pequena.
Só posso recomendar que o leiam, porque é literatura viva, porque a busca da pessoa que narra e protagoniza muitas das histórias nesse livro é uma busca que leva junto a pessoa que o está lendo. A pessoa que narra se atira no abismo do ser e das árvores genealógicas (árvores de sangue) com uma corda amarrada à cintura da criatura que a está lendo. E deixar-se puxar para esse abismo, para mim, não foi uma experiência ruim, muito pelo contrário.
Em suma: é um livro de sensações, cada pessoa tem que ler para "sentir“, sobretudo "sentir" o corpo pesando ou levitando ou gritando, por vezes, de dor. Aceite o desafio: é um abismo profundo que nos leva a uma viagem de sangue por corpos e genealogias de gentes e árvores, que querem de verdade saber de si, e dos outros.
Eis o que escrevi na contracapa enquanto o lia: "Para se brincar com a língua desse jeito é preciso ter uma competência enorme; para poder mergulhar em si desse jeito é preciso ter uma coragem ainda maior“.
Kim de L’Horizon, Blutbuch, Dumont, 334 páginas.