terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Elegias do país do Sanhauá, Joedson Adriano

Para mim, literatura boa é aquela que nos sacode de alguma maneira, seja por meio de um certo estranhamento ao tema, à proposta estética, à linguagem, às personagens ou tudo isso junto.

Na primeira leitura que fiz deste texto, que o narrador muito bem define como uma "ateologia poética" (p. 75), tive certeza de que estava diante de algo valioso tanto por conta da linguagem, que mescla o cotidiano profano ao sagrado bíblico e o clássico lírico à fala das ruas, como por conta do estranhamento que o texto pode causar diante de um narrador que se expõe sem maquiagem e que critica práticas que inibem as pessoas de dizerem o que realmente pensam sobre determinados assuntos.

O texto deste livro traz um tipo de canção do exílio. Exílio tanto no espaço, já que o narrador encontra-se longe de sua terra, o país do Sanhauá, quanto no tempo, já que o lamento é pela nostalgia do passado mas também pelas angústias do contemporâneo, pela dificuldade de compreender o presente e seus novos requisitos e valores. 

De todos os modos, trata-se de uma crônica em versos com as recordações de um lugar que, muito provavelmente, já não exista como nos conta o narrador, mas que retrata a realidade de muitos lugares no Brasil e no mundo. O país do Sanhauá é um lugar de pobreza, machismo, homofobia, selvageria, brutalidade, mas também é um lugar em que vivem ou viveram pessoas, e essas pessoas e suas mentalidades é o que este texto nos apresenta em sua nua humanidade e, o que é melhor: faz isto a partir do ponto de vista de alguém que está ou esteve inserido neste ambiente, o que, com certeza, faz toda a diferença no texto. E exatamente por isso o narrador não pôde maquiar-se, por mais cruel que seja a sua realidade ele estabeleceu um pacto de fidelidade com ela, e como fruto dela ele apresentou-se, e de modo bastante coerente.

O texto é, a meu ver, uma forma de homenagem às pessoas do país do Sanhauá, pessoas que habitam as margens e o esquecimento, mas que constroem o países, e não é à toa que a canção começa falando do pedreiro, que não é, mas bem poderia ser, o Pedro Pedreiro, que Chico Buarque já cantou.

Enfim: trata-se de um texto riquíssimo em vários aspectos, um texto que incomoda e faz pensar. O narrador, por exemplo, ou o eu-poético da composição, consegue ao mesmo tempo ser um misto de subversão e conservadorismo, o que faz dele um tipo muito humano aliás. 

Sem dúvidas, este texto é um ótimo representante do tipo de literatura que vem sendo produzida no Brasil contemporâneo e que opta por estar fora dos circuitos tradicionais. 

Elegias do país do Sanhauá, Joedson Adriano, editora Moinhos, 2017.



Um trechinho, para degustar:

"não há mais espaço pros selvagens
no mais alto nível que não está mais aqui
e até o mais baixo se rebaixa à higiene
a Europa afeminada pelo socialismo
pela falta do deus dos exércitos e pelo medo da guerra
transformou o jogo num totó
tudo tão limpo que nem dá gosto
sem dribles de gênio nem confusão de genioso
se come caranguejo com garfo e faca" (pp. 23f.)





© 2014-2017 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário