Para mim, literatura
boa é aquela que nos sacode de alguma maneira, seja por meio de um certo
estranhamento ao tema, à proposta estética, à linguagem, às personagens ou tudo
isso junto.
Na primeira
leitura que fiz deste texto, que o narrador muito bem define como uma "ateologia
poética" (p. 75), tive certeza de que estava diante de algo valioso tanto por conta da linguagem, que mescla o cotidiano profano ao sagrado bíblico e o clássico lírico à fala das ruas, como por conta do estranhamento que o texto pode
causar diante de um narrador que se expõe sem maquiagem e que critica práticas que inibem as pessoas
de dizerem o que realmente pensam sobre determinados assuntos.
O texto
deste livro traz um tipo de canção do exílio. Exílio tanto no espaço, já que o
narrador encontra-se longe de sua terra, o país do Sanhauá, quanto no
tempo, já que o lamento é pela nostalgia do passado mas também pelas angústias do
contemporâneo, pela dificuldade de compreender o presente e seus novos requisitos e valores.
De todos os modos, trata-se de uma crônica em versos
com as recordações de um lugar que, muito provavelmente, já não exista como nos
conta o narrador, mas que retrata a realidade de muitos lugares no Brasil e no
mundo. O país do
Sanhauá é um lugar de pobreza, machismo, homofobia, selvageria, brutalidade,
mas também é um lugar em que vivem ou viveram pessoas, e essas pessoas e suas
mentalidades é o que este texto nos apresenta em sua nua humanidade e, o que é
melhor: faz isto a partir do ponto de vista de alguém que está ou esteve
inserido neste ambiente, o que, com certeza, faz toda a diferença no texto. E exatamente por isso o narrador não pôde maquiar-se, por mais cruel que seja a sua realidade ele estabeleceu um pacto de fidelidade com ela, e como fruto dela ele apresentou-se, e de modo bastante coerente.
O texto é, a meu ver, uma forma de homenagem às pessoas do país do Sanhauá, pessoas que habitam as margens e o esquecimento, mas que constroem o países, e não é à toa que a canção começa falando do pedreiro, que não é, mas bem poderia ser, o Pedro Pedreiro, que Chico Buarque já cantou.
Enfim:
trata-se de um texto riquíssimo em vários aspectos, um texto que incomoda e faz
pensar. O narrador, por exemplo, ou o eu-poético
da composição, consegue ao mesmo tempo ser um misto de subversão e
conservadorismo, o que faz dele um tipo muito humano aliás.
Sem dúvidas, este texto é um ótimo representante do tipo de literatura que vem sendo
produzida no Brasil contemporâneo e que opta por estar fora dos circuitos tradicionais.
Elegias do país do Sanhauá, Joedson Adriano, editora Moinhos, 2017.
Um trechinho, para degustar:
"não há
mais espaço pros selvagens
no mais alto
nível que não está mais aqui
e até o mais
baixo se rebaixa à higiene
a Europa
afeminada pelo socialismo
pela falta
do deus dos exércitos e pelo medo da guerra
transformou
o jogo num totó
tudo tão
limpo que nem dá gosto
sem dribles
de gênio nem confusão de genioso
se come caranguejo com garfo e faca" (pp. 23f.)
se come caranguejo com garfo e faca" (pp. 23f.)
© 2014-2017 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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