segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sorte, Nara Vidal


Sorte, de Nara Vidal, conta histórias de opressões dos mais variados tipos. Sobretudo das opressões que atingem as mulheres, as pessoas de pele negra em geral e, em particular, as violências que sofreram e ainda sofrem as mulheres negras.

 

É uma história que se desenvolve, em sua grande parte, quando a escravidão ainda era legalizada no Brasil, ali no início do século XIX, época em que famílias imigrantes europeias vinham para o país, em plena guerra da Cisplatina. 

 

O que me chama a atenção neste livro da Nara, além do título, é o mosaico de opressões que se pode identificar no que é narrado, coisa que, a meu ver, dá ao texto um caráter de denúncia e testemunho que continua sendo muito necessário, já que vozes oprimidas e subalternas ainda não têm ouvidos em todos os lugares. Também o funcionamento do mecanismo opressor, que conta com a fidelidade de oprimidos que não perdem a chance de se tornar também opressores.

 

Não tem como se ler este livro sem pensar naquela famosa frase do personagem Diadorim de Grande Sertão: Veredas, livro de Guimarães Rosa: "Mulher é gente tão infeliz...". Sim, Diadorim, mas não era pra ser assim, não tem que ser assim... Mas ainda é preciso muita luta para se construir um mundo em que pessoas oprimidas tenham a liberdade de viver a sua vida como desejam, e que tenham o direito de se desenvolver como são. Do início do século XIX até o início do século XXI pode-se ver que as coisas não mudaram tanto. A escravidão continua existindo, só que de outras formas, bem como toda a sorte de imagináveis opressões.

 

Não tem como se ler este livro sem pensar nos crimes de roubo de bebês e de adoções ilegais, coisas que também aconteceram nas ditaduras militares na Europa e na América Latina, e que são um tema bastante atual, cujos traumas se pode ver tratados de maneira literária, por exemplo, em Diario de una princesa montonera – 110% Verdad, da argentina Mariana Eva Perez (2012, Capital Intelectual).

 

Não tem como se ler este livro sem pensar no funcionamento criminoso do sistema manicomial, como aquele que existiu em Barbacena e foi denunciado por Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro (2013, Geração), bem como na incompreensão (muito provavelmente) do espectro autista, já que uma das irmãs da protagonista tem um comportamento que se enquadra, em muitos aspectos, nesse quadro. É que, antigamente, todo aquele ou aquela que desviasse do padrão considerado normalidade era taxado/a automaticamente de louca/o, sem falar nas mulheres diagnosticadas como "histéricas".

 

Não tem como se ler este texto e ficar imune às violências que sofreram e sofrem os corpos femininos e negros, sobretudo os corpos femininos negros.

 

Não tem como se ler este texto sem ver o racismo estrutural claramente manifestado, sem perceber a dificuldade das pessoas de pele branca em enxergar as pessoas de pele negra como pessoas, como seres iguais, com a mesma dignidade. Isso, para mim, fica muito claro quando se compara a forma como os personagens de pele branca se referem aos personagens de pele negra, e vice versa, mesmo quando existe uma relação de amizade entre eles e já se levou em  consideração o aspecto do anacronismo – o racismo retratado da época se estende até os dias atuais, e isso se pode também perceber no texto, de maneira sutil. É aquela questão do racismo inconsciente que pessoas de pele mais clara nem sempre conseguem perceber em si mesmas. Este texto tem passagens muito ricas que podem ser estudadas sob este aspecto particular.

 

Por último, não tem como se ler este texto sem perceber que a cor (a negritude, a branquitude e outras construções raciais) é algo que está nos olhos dos personagens de pele clara: os personagens de pele negra enxergam e tratam pessoas como pessoas, independente da cor da pele. Já os personagens de pele clara, não.

 

Por esses e por outros motivos é que, ao ler este texto, se entende que foi muito bem merecido o Premio Oceanos dado a ele em 2019.

 

A Editora Moinhos é uma editora relativamente pequena, porém grande em suas escolhas. A Moinhos tem como princípio trazer aos leitores textos que valem muito a pena ser lidos, textos que têm excelente qualidade literária e que geralmente não encontram tanto espaço no mercado.

 

Nesse momento de pandemia, especialmente, o mercado do livro - a área da cultura em geral -  está passando por uma crise muito grave. Eu, como leitora e amante de literatura, me entristeço ao ver livrarias e editoras tendo que fechar as portas em todo o mundo, por conta da recessão mundial. 

 

De maneira que sou muito grata pela existência da Moinhos e por ter tido a sorte de poder encontrar Sorte, de Nara Vidal, num lugar em que pudesse comprá-lo.

 

Sem mais delongas: leia o livro da Nara. Geralmente não falo sobre conteúdo para não estragar a eventual surpresa de quem ainda lerá o livro. Eu sou o tipo de leitora que, na maioria das vezes, não lê nem sinopse - gosto de mergulhar num texto sem ter lido nada sobre ele antes. Sei lá, adoro testar a minha sorte!

 

Ah, em Sorte você encontrará outras sugestões de títulos da Moinhos que podem despertar a sua curiosidade. Já adianto que esta editora tem um catálogo muito interessante, vale a pena conhecer.

 

Bem, boa sorte na leitura de Sorte, e no que mais você quiser ler. 

Não perca tempo, não deixe Sorte escapar de seus olhos - nem de suas mãos.



 

Sorte, Nara Vidal, Editora Moinhos, 2018, 142 páginas, Ebook.




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