quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Viajantes do Abismo: fantasia que renova!



Se você gosta de fantasia inteligente, sugiro que leia este livro – urgente! – pois muito provavelmente você vai gostar. 

Já se você é do time dos que veem a fantasia ou a distopía como um gênero menor, ou do time dos que ainda não descobriram o alto valor da diversidade, sugiro este livro mais ainda, pois pode ser que ele consiga despertar em você o prazer da leitura e, de quebra, abrir seus olhos para questões essenciais do nosso tempo. 

Este livro não trata de temas que se possa considerar agradáveis, mas ele os trata de um jeito que prende ao texto do começo ao fim. O bom humor ou a ironia com que boa parte das coisas são contadas – reações inusitadas das personagens, por exemplo –  atenuam a gravidade do que está sendo narrado. O uso da ironia, do humor e da sátira costumam ser marcas de textos que nos fazem pensar, textos distópicos que servem à crítica e à reflexão. Nikelen Witter é historiadora, pesquisadora, professora, e é uma escritora que sabe muito bem como usar a fantasia para contar histórias que precisam urgentemente ser conhecidas.

Eu queria ter pego este livro e tê-lo lido sem pausas, porque sempre que eu o abria, meu desejo era não fechá-lo. Porém, a correria do dia a dia não me permite a leitura ininterrupta de um texto com mais de trezentas páginas. Mas mesmo tendo que fazer pausas, a leitura me prendeu de um jeito que, quando dei por mim, estava até sentindo o cheiro do gelo e procurando tempo nos bolsos – quando você tiver lido este livro você saberá do quê estou falando. 

Não vou comentar aqui sobre a(s) história(s) porque, qualquer coisa que eu diga, poderá tirar a surpresa do leitor ou da leitora. E o bom de ler um livro também está nisto: na descoberta parágrafo por parágrafo, página por página, daquele mundo que vai se revelando e se montando na cabeça e na fantasia de cada um. 

Por isso é que eu penso que exatamente aquelas pessoas que dizem não gostar de fantasia são as que deveriam dar a este livro a chance de mostrar a elas que fantasia é algo muito necessário, ainda mais num mundo tão louco e numa época tão confusa quanto a nossa! A fantasia, ainda que distópica, é o que nos ajuda a enxergar as coisas de outro modo, a ver nascer algum tipo de otimismo no meio da mais completa desolação.

Razões extras para recomendar

É um livro com protagonistas fortes, um livro que preza e dá visibilidade à diversidade, um livro que dá voz e protagonismo a pessoas que costumam ser tratadas de modo subalterno em vários tipos de narrativas. E estes já são motivos mais do que suficientes para que este livro seja lido, relido, presenteado, emprestado, recomendado etc. 

Considerações sobre o gênero

Ao final da leitura eu fiquei me perguntando se este texto se trata realmente de uma distopia, uma vez que o medo ou a advertência não foram as impressões que em mim ficaram após a leitura. O que este texto acendeu em mim foi, de maneira surpreendente, a esperança e um desejo mais forte ainda de lutar por mudanças, de ser a mudança que eu quero ver. Neste sentido eu diria que este texto é uma ode à resistência e um testemunho autêntico dos nossos dias.

Nos últimos anos eu li utopias, distopias e textos pós apocalípticos dos mais diversos tipos e nas mais diversas línguas, e o que eu vi neste livro, e que me alegrou muito no que tange ao contexto da literatura brasileira contemporânea, é que este texto não ficou devendo nada a nenhum dos outros textos do gênero que eu li recentemente, nem mesmo aos grandes que já fazem parte do cânone. Isto é importante ser dito porque mostra que a literatura brasileira contemporânea, no tocante a este gênero específico, não pode mais ser ignorada num contexto internacional. Talvez só não tenha ganho o devido reconhecimento porque ainda não teve tradução para outras línguas. Então, tradutores, fica a dica! Sugiro a tradução para o vasto público hispanohablante.

Aspectos outros que se deve ressaltar

Ao final da leitura fiquei com a impressão de que quanto mais bagagem histórica, científica e literária, mais interessante se tornará a leitura, pois o texto está cheio de intertextualidade (consciente ou inconsciente) com outros textos distópicos e fantásticos.

A topologia é um dos aspectos mais interessantes, também a mistura entre coisas que interligam passado e futuro. Quem gosta de design e moda também está muito bem servido, porque os figurinos descritos são, para dizer o mínimo, curiosos.

Lingüisticamente também é um texto muito interessante, porque várias passagens revelam pontos nos quais a linguagem foge ao padrão do português brasileiro considerado standard, o que também não deixa de reforçar a idéia de promover e tornar visível a diversidade também lingüística do Brasil. O que alguns apontariam (talvez) como erros de português ou falhas de revisão, eu percebi como uma escolha lingüística consciente, assim como é consciente a minha escolha de preservar o trema e acentuar as idéias que eu acho que valem a pena ser acentuadas. É um livro que, quanto mais despidos de preconceitos estivermos, melhor será a experiência de leitura e mais rico o texto se revelará.

A forma como a imprensa costuma distorcer a realidade das coisas também está bem representada. Taí, não lembro de já ter lido estudos sobre a representação e o papel da imprensa na literatura... Estudantes, fica a dica!

Seja a revolução que você quer ver

Esta idéia vale tanto para as personagens como para a autora do livro e seus colaboradores: leitores/leitoras e autores/autoras de literatura fantástica que não felizes com a situação do fantástico brasileiro se dispuseram a começar a ser a mudança que eles e elas queriam ver. Taí, os frutos são muito bons e já estão sendo colhidos. Parabéns! Parabéns em dobro, porque publicar no Brasil, principalmente no Brasil de hoje, é mais do que difícil: é uma luta de Sísifo!

Por último, ao ler este livro entende-se por que, nas situações de crise como os pós guerra, se nota um avanço na ficção científica, distópica e/ou pós-apocalíptica. É simples: as pessoas precisam de fantasia para renovar as esperanças, as energias, e sobreviver!


Ainda não leu? Pois trate de ler!
Não se trata de uma ordem e, sim, de uma sugestão! :-)


Viajantes do Abismo, Nikelen Witter, Editora AVEC.



Foto: Viajantes do Abismo à beira do cais em Glückstadt.




© 2014-2019 Helena Frenzel. Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Sem Derivações - Sem Derivados 2.5 Brasil (CC BY-NC-ND 2.5 BR). Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

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